O que faz uma criança de 5 anos ter Tom Hanks como herói

 


Em um dia nada memorável, que parecia ser perto da hora do almoço, uma menina de 5 anos sofreu uma violência que demorou muito para ela entender que se tratava de uma violência. Na verdade ela demorou muitos anos para entender o que foi aquilo, muito embora ela tenha sentido de imediato a sensação horrível que foi de viver aquela experiência que marcou a sua vida para sempre. Logo que aquilo aconteceu, ela correu o máximo que pode para um lugar seguro, e o quarto de seus pais, que tinham se ausentado brevemente de onde ela estava, parecia o refúgio ideal.

Já ali com a porta fechada, a menina sentiu um certo alívio, mas ainda sentia muito medo. Medo de tomar bronca por ter desobedecido uma ordem, medo daquilo que ela não entendia acontecer de novo, e hoje ela entende que também tinha de descobrir que aquilo era o que acontecia com quem saía dos eixos. Todos os seus medos se encaminharam para uma culpa que sequer era dela, e a menina desatou a chorar.

Mas ela achava que ninguém podia vê-la chorar, porque ela não podia contar o que tinha acontecido. Para ninguém.

Ela ligou a TV do quarto - aquela ação involuntária que sempre fazemos, aparentemente para passar o tempo, distrair a cabeça ou esquecer de algo que está fritando a nossa mente. Naquela época, o SBT tinha o "Cinema em Casa" (um dos milhares de programas extintos do canal), e com esse nome sugestivo, quem não viveu na década de 1980 e 90 pode imaginar que era a hora do "filminho", como a Sessão da Tarde da Globo. O filme do dia era "Um dia a casa cai", e nele, o personagem interpretado pelo Tom Hanks comprava uma baita casa, e durante a reforma, ele descobria porque que a construção tinha sido uma pechincha. Assisti-lo ficando preso em um buraco no assoalho envolvido por um tapete, arruinando uma escadaria podre enquanto só tentava acessar o andar de cima da casa e entrando em um colapso de riso enquanto a banheira se espatifa no andar debaixo por conta da laje podre certamente cumpriu uma missão que possivelmente nenhum envolvido pela existência do filme imaginaria: que faria uma menina que tinha acabado de ser molestada parar de chorar.

Durante muitos e muitos anos, todo filme que o Tom Hanks aparecia, a menina associava aquela fisionomia à um acalento. Era como se ver aquele homem na TV fosse um abraço seguro, que ela sentia que ia ficar tudo bem. Mesmo quando ela passou a entender o que aquela violência significava, aquela sensação involuntária a acompanhou na evolução do processo, e para ela, ver outros filmes com aquela cara simpática acabou se tornando um escapismo para outros problemas, até mesmo os menores deles.

Ela se simpatizou ainda mais quando descobriu a voz original do Tom Hanks, fora da dublagem nacional. E até que combinou mais ainda com aquela cara de paizão.

Aí quando ela tinha 12 anos chegou Toy Story e aquela musiquinha "You've got a friend in me" veio para acabar com ela de vez. Difícil criança chorar assistindo desenho, né? Pois ela chorava. Chora ainda. Todas as vezes. Tanto é que mesmo depois de tantos anos, já (muito adulta), ela foi comprar um boneco do Woody e chorou igual uma tonta no meio da loja, abraçando a caixa.

E quando ela assistiu, já adulta, Tom Hanks chorando em choque em Capitão Phillips, ela ficou desolada.

Não preciso nem contar que ela chorou o filme inteiro enquanto assistia "O pior vizinho do mundo", né?

Essa associação psicológica de segurança à uma pessoa que sequer sabe de sua existência foi conversada em muitas e muitas sessões de terapia. Ela até passou a aceitar isso como uma coisa boa, e parou de ter vergonha de assumir isso para as pessoas mais próximas.

A menina demorou 17 anos para contar aos seus pais o que aconteceu aquele dia.

E 35 anos para escrever a respeito daquele dia.

E até hoje, o Tom Hanks é o herói dela.



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