Solitude e Pobres Criaturas

 


Recentemente, aprendi na terapia a diferença entre solidão e solitude. Solidão é aquele sentimento que pode morar na gente mesmo no meio de uma multidão. Já a solitude é aquela sensação de prazer ao curtir a sua própria companhia, sem incômodo. E foi curtindo a minha solitude que fui ao cinema na minha própria cia assistir Pobres Criaturas (que coincidentemente, da última vez que fui ao cinema sozinha foi para assistir também um outro filme de Emma Stone). 

Já faz um tempo que descobri o quão prazeiroso é fazer este tipo de programação. E honestamente, preciso repetir mais vezes. Para mim, o cinema sempre foi uma imersão na cabeça de quem criou aquela história, assim como os livros, e curtir esta experiência sozinha aumenta ainda mais as químicas do meu cérebro. Também não sei se esta sensação tenha sido causada pelo próprio filme - talvez seja um pouquinho dos dois.

E posso dizer que a total imersão assistindo Pobres Criaturas foi uma viagem fantástica, conduzida por um roteiro incrivelmente perspicaz, cores (e por um certo tempo, a ausência delas) em tons pastel para seduzir a sua atenção, e me arrisco a dizer que é também para te deixar confortável em meio as bizarrices que acontecerão ao longo da trama. Há um certo charme nos efeitos visuais, que caminham lado a lado com a trilha sonora na tentativa de te causar estranheza em meio ao conforto das cores, e assim você passa achar excentricamente fofo um buldogue com corpo de pato e um pato com corpo de cachorro passar na sua tela. 


O trailer não te oferecer uma sinopse é um convite para a surpresa. Isso torna a experiência ainda mais gostosa, porque faz parte você acompanhar a evolução de Bella Bexter, a personagem interpretada (maravilhosamente bem) por Emma Stone, sem nenhuma expectativa. E trazer essa evolução para tela de forma lúdica é um prato cheio para esta imersão, porque transforma a história de um Frankestein em um conto de fadas empático. Aqui nos deparamos com uma criatura desprovida de hipocrisia, 100% literal, que não perde sua pureza nem diante dos prazeres, e que inconscientemente passa o filme todo fugindo de diversos tipos de castrações (figurativas ou literais), seja por seu comportamento "esquisito", seja por sua personalidade questionadora ou por machismo mesmo.

E enquanto estava eu ali sentada, curtindo o filme e minha solitude, reparei que Bella Bexter também conduz a história passeando pela solitude e solidão. Ela se rebela quando se sente sozinha em uma casa imensa, quando percebe que o mundo lá fora oferece muito além dos portões de sua casa, que é mais divertido desbravá-lo do que quebrar pratos durante o jantar. E ao explorá-lo, ela se apaixona por sua solitude, enquanto conhece pessoas sem se aprofundar em relacionamentos, enquanto estuda as reações humanas (muito diferentes das suas) de longe. Quando se depara pela primeira vez com a escassez e pobreza. Tudo isso faz parte da evolução dela, até chegar ao seu ápice, no fim do filme.



A estranheza dos personagens e do próprio espectador também surge ao conhecer os conflitos de Bella, mas que só se parecem com conflitos porque acreditamos fielmente que alguém desprovido de moralidade não seja capaz de sentir nada. Ao mesmo tempo que ela se sente grata por alguém que salvou a sua vida, também sente raiva por quem a aprisionou. O personagem Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) não se conforma ao ver uma mulher sem apego emocional nenhum à ele, mesmo que ela demonstre total devoção à sua figura na cama. Mas está aí uma protagonista totalmente desembrulhada de todas as camadas finas de percepções que nós mesmos criamos na nossa cabeça sem ninguém ter pedido nada.

Quanto à ambientação totalmente desprendida de uma época, para mim foi um deboche maravilhoso da nossa cara. Seja no passado das mangas bufantes e arquitetura vitoriana, ou no presente/futuro dos carros voadores, nós evoluímos muito pouco moralmente, e isso com certeza é um prelúdio das próximas eras. Diferente de Bella, que evoluiu em duas horas de filme, provavelmente ainda estamos longe de enxergar o mundo como ele é verdadeiramente, desprendidos de nossas vaidades e egoísmo.

Esta resenha está disponível também de maneira bem reduzida em vídeo aqui e aqui.

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