Trinta e cinco anos depois de Feliz ano velho , Marcelo Rubens Paiva traça uma história dramática da luta de sua família pela verdade.
Eunice Paiva é uma mulher de muitas vidas. Casada com o deputado Rubens Paiva, esteve ao seu lado quando foi cassado e exilado, em 1964. Mãe de cinco filhos, passou a criá-los sozinha quando, em 1971, o marido foi preso por agentes da ditadura, a seguir torturado e morto. Em meio à dor, ela se reinventou. Voltou a estudar, tornou-se advogada, defensora dos direitos indígenas. Nunca chorou na frente das câmeras.
Ao falar de Eunice, e de sua última luta, desta vez contra o Alzheimer, Marcelo Rubens Paiva fala também da memória, da infância e do filho. E mergulha num momento obscuro da história recente brasileira para contar ― e tentar entender ― o que de fato ocorreu com Rubens Paiva, seu pai, naquele janeiro de 1971.
Sinopse da editora
"A memória não se acumula sobre outra. A recente não é resgatada antes da milésima. Que não fica esquecida sob o peso das novidades, do presente. O passado interage com o segundo vivido, que já ficou para trás, virou memória recente. Memórias se embaralham."
Terminei aos prantos esse livro que é uma verdadeira aula de história e de humanidade, escrito por alguém que viveu e sofreu muito de perto as atrocidades da época mais nojenta e vergonhosa que o Brasil já viveu: a ditadura militar.
Eu tô aqui ainda degustando a sensibilidade de Marcelo Rubens Paiva, e tentando encontrar palavras adequadas para falar sobre este que foi um dos melhores livros que li na vida, e ele já começa com uma paulada indireta. Marcelo usa das repetições pra trazer a nossa consciência a fragilidade do cérebro de uma pessoa com Alzheimer. Ele já nos entrega um prelúdio do que será a história da dona Eunice, e já terminei o 1º capítulo queimando largada, com o rosto lavado de lágrimas.
No segundo capítulo, comecei a sentir que este livro não somente narra a história de luta da mãe de Marcelo, como também é uma celebração honesta ao nosso poder de lembrar. Das memórias que construimos ao longo da vida e o quão precioso é a gente poder reviver tais memórias sempre que quiser.
"Descobri então que Eunice não foi uma só. Existiram algumas que não se contrapunham, completavam-se, não se contradiziam, somavam-se, reconstruíam-se da tragédia, alimentavam-se dela para renascer."
Do terceiro capítulo adiante começa a grandiosa aula de história. Somos introduzidos a visão de Marcelo, ainda pequeno, diante o sequestro de seu pai, e a prisão de sua mãe e irmã mais velha. São várias camadas que separam a mesma história dos olhos do Marcelo criança e da verdade que levou o seu pai a morte, e de tantas mentiras contadas para justificar o desaparecimento de Rubens.
Só nos últimos capítulos, em que Marcelo conta mais a fundo como dona Eunice foi adoecendo aos poucos, que tudo passa a fazer sentido. Todos esses pormenores de toda a história se costuram a doença do esquecimento, e de como a vida se mostra um imenso paradoxo: alguém que lutou tanto contra o sistema mais absurdo que nosso país já viveu, movida pelas lembranças de uma tortura contra seu próprio marido, passou os últimos anos de sua vida sem lembrar de mais nada.
"Até então, acreditava-se que a memória era compartimentalizada num reservatório, numa parte do cérebro, que os pensamentos a elaboravam, a interpretavam e a engavetavam por lá. Sabemos agora que não. Ela não fica armazenada em uma seção exclusiva, mas espalhada pelo cérebro todo, vive em sinais e impulsos eletromagnéticos. As lembranças se movem pelo cérebro. Não à deriva, pois a qualquer momento neurônios constroem milhões de novas conexões e as resgatam. O circuito neurológico se modifica a cada segundo. Somos diferentes em cada instante que vivemos. Temos um cérebro diferente a cada segundo. E quando lembramos algo, as conexões mudam fisicamente a memória de lugar." (pág. 195)
Este livro é muito necessário. Deveria ser leitura em sala de aula. Se não vivêssemos em um período tão alienado, em que as pessoas ignoram qualquer oportunidade de conhecer a verdade, certamente traria consciência pra muitas pessoas que ainda acreditam que “só sofria na ditadura quem não andava na linha”.
Outros trechos de "Ainda estou aqui" que destaquei durante a minha leitura:
"— A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça." (pág. 141)
"Naquela tarde que pegamos o atestado de óbito, em 1996, vi minha mãe então chorar como nunca fizera antes. Era um urro. Não tinha lágrimas. Como se um monstro invisível saísse da sua boca: uma alma. Um urro grave, longo, ininterrupto. Como se há muito ela quisesse expelir. Pela primeira vez, me deixou falar, sem me interromper. Pela primeira vez, na minha frente, chorou tudo o que havia segurado, tudo o que reprimiu, tudo o que quis. Foi um choro de vinte e cinco anos em minutos. O rompimento de uma represa." (pág. 191)
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